sábado, 31 de dezembro de 2011

White Hunter Black Heart


Peter Viertel escreveu White Hunter Black Heart após ser convidado por John Huston para que ajudasse em um roteiro seu em pleno território africano – sim, falo de The African Queen, filme que até hoje resiste sob o status de clássico absoluto do cinema de aventura. Huston lhe revela, então, sua imensa vontade de caçar, de realizar o famoso ‘safári’, ao passo em que dizia que após as filmagens de seu filme, iria atrás de alguns búfalos e de elefantes de presas grandes – sua principal meta. Porém, o que Viertel testemunhou foi um homem quase que alucinadamente obstinado a matar um daqueles elefantes, um diretor que foi capaz de largar seu projeto de lado para ir em busca de sua caça, colocando toda a produção e equipe técnica em segundo plano e consequentemente atrasando as filmagens.

Esse foi seu argumento principal para escrever o livro, que futuramente levou Eastwood a adaptá-lo para as telas, numa espécie de afirmação sua na função de diretor e ator - mas em um trabalho completamente diferente do que jamais tinha feito com relação às exigências da personagem, tendo que desconstruir sua figura de Homem sem Nome, sombrio e de poucas palavras, e construi-la novamente em um intelectual ideológico que não economiza em xingamentos, brincadeiras e exposições de idéias, na qual também não se intimida em dar pitacos eastwoodianos e transformar Huston em uma figura ambígua, que tende à um personagem diferente do que se espera – mas não por isso menos que perfeita. Assim, gosto da definição que o Rosenbaum dá para a relação do Eastwood com John Wilson, a personificação de Huston:

“If the character finally winds up seeming like a fool, Eastwood hasn’t made that judgment from a safe and superior distance; he’s implicating aspects of himself and his own persona along the way. If he had somehow contrived (with the use of heavy makeup, say) to make his impersonation of Huston letter-perfect (and Oscar-ready) rather than merely suggestive, most of the point of his performance would have been lost, because in the final analysis this isn’t simply a movie about Huston and what he represents. It’s a movie about Eastwood examining Huston via himself, and examining himself via Huston — a series of transactions that, thanks to all the issues broached by the script, proves to have a great deal of intellectual content as well as truth.”


Mais que um simples produto unilateral, como a própria construção da personagem de Eastwood por si só já indicia, White Hunter Black Heart trabalha em muitos casos a questão da dualidade, do poder de escolha e da relação causa-efeito. Wilson, diretor emplacado no tédio, nas dívidas e nas ideais, vê na áfrica um refúgio, um paraíso de onde nunca mais deseja sair; também vê a política hollywoodiana de finais felizes como uma besteira atrativa para as grandes massas, ignorando assim a personagem de Jeff Fahey – que interpreta o tal escritor -, após este contestar o trágico fim de seu roteiro. (o confronto aos ideais hollywoodianos/estadunidenses não param por aí. Durante todo o filme, Eastwood também dá uma cutucada no imperialismo norte-americano, quanto a exploração e colonização africana.)

Mas Eastwood, literalmente, sabe que o que tem em mãos não é um material qualquer, que começa e termina na mesma estaca. Ele tem consciência que o final, uma vez extremamente amargo, é capaz de mudar sua personagem a um ponto em que não se existe certeza sobre mais nada, apenas que o escritor estava certo quando contestou o pungente final criado para terminar seu filme. Cria-se então um paralelo: enquanto o filme que assistimos termina de maneira quase que brutal, o filme de Wilson tem a oportunidade – que mais soa como obrigação pessoal – de ganhar um final feliz. Tal final é capaz, também, de anular toda moralidade ‘Hemingwayna’ que plana sobre o filme, quebrando-a de tal modo que a simplicidade tão almejada pela personagem de Eastwood acaba por traí-lo, destroçando qualquer ideal que tentou alcançar enquanto caçador e humano selvagem.

Abalado com o que acontece – algo que prefiro não revelar, para que a reação primária de quem assistir seja mais contundente -, Wilson senta-se sobre sua cadeira de diretor, prepara o set de filmagem e, oscilante, grita ‘ação’. O corte seco, que leva à tela escura toda carga - psicológica, social, cinematográfica, humanista, etc - derramada sobre nós ao longo das quase duas horas de filme, é enfim a redenção desse drama hawksiano, baseado na persona de John Huston e criado como ponto de análise de um diretor sobre si mesmo, enquanto realizador, ator e ser humano.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

rayuela, cap. 145


Morelliana.

Uma citação:
Essas, portanto, foram as razões fundamentais, capitais e filosóficas que me induziram a edificar a obra sobre a base de partes soltas – conceituando a obra como uma partícula da obra – e tratando o homem como uma fusão de partes do corpo e partes da alma – enquanto trato a Humanidade inteira como uma mistura de partes. Mas se alguém me fizesse tal objeção: que esta minha concepção parcial não é na verdade nenhuma concepção, mas sim uma mofa, um gracejo, uma troça e uma burla e que eu, em vez de sujeitar-me às severas regras e cânones da arte, estou tentando burlá-los, através de irresponsáveis troças, vaias e caretas, responderia que sim, que isso é certo, que exatamente esses são os meus objetivos. E, por Deus – não vacilo em confessá-lo – desejo esquivar-me tanto da vossa Arte, meus senhores, quanto de vós mesmos, pois não vos posso suportar juntamente com aquela Arte, com vossas concepções, vossa atitude artística e com todo o vosso meio artístico!

GOMBROWICZ, Ferdydurke, cap. IV.
Prefácio ao Filidor vestido de criança.