
Peter Viertel escreveu White Hunter Black Heart após ser convidado por John Huston para que ajudasse em um roteiro seu em pleno território africano – sim, falo de The African Queen, filme que até hoje resiste sob o status de clássico absoluto do cinema de aventura. Huston lhe revela, então, sua imensa vontade de caçar, de realizar o famoso ‘safári’, ao passo em que dizia que após as filmagens de seu filme, iria atrás de alguns búfalos e de elefantes de presas grandes – sua principal meta. Porém, o que Viertel testemunhou foi um homem quase que alucinadamente obstinado a matar um daqueles elefantes, um diretor que foi capaz de largar seu projeto de lado para ir em busca de sua caça, colocando toda a produção e equipe técnica em segundo plano e consequentemente atrasando as filmagens.
Esse foi seu argumento principal para escrever o livro, que futuramente levou Eastwood a adaptá-lo para as telas, numa espécie de afirmação sua na função de diretor e ator - mas em um trabalho completamente diferente do que jamais tinha feito com relação às exigências da personagem, tendo que desconstruir sua figura de Homem sem Nome, sombrio e de poucas palavras, e construi-la novamente em um intelectual ideológico que não economiza em xingamentos, brincadeiras e exposições de idéias, na qual também não se intimida em dar pitacos eastwoodianos e transformar Huston em uma figura ambígua, que tende à um personagem diferente do que se espera – mas não por isso menos que perfeita. Assim, gosto da definição que o Rosenbaum dá para a relação do Eastwood com John Wilson, a personificação de Huston:
“If the character finally winds up seeming like a fool, Eastwood hasn’t made that judgment from a safe and superior distance; he’s implicating aspects of himself and his own persona along the way. If he had somehow contrived (with the use of heavy makeup, say) to make his impersonation of Huston letter-perfect (and Oscar-ready) rather than merely suggestive, most of the point of his performance would have been lost, because in the final analysis this isn’t simply a movie about Huston and what he represents. It’s a movie about Eastwood examining Huston via himself, and examining himself via Huston — a series of transactions that, thanks to all the issues broached by the script, proves to have a great deal of intellectual content as well as truth.”

Mais que um simples produto unilateral, como a própria construção da personagem de Eastwood por si só já indicia, White Hunter Black Heart trabalha em muitos casos a questão da dualidade, do poder de escolha e da relação causa-efeito. Wilson, diretor emplacado no tédio, nas dívidas e nas ideais, vê na áfrica um refúgio, um paraíso de onde nunca mais deseja sair; também vê a política hollywoodiana de finais felizes como uma besteira atrativa para as grandes massas, ignorando assim a personagem de Jeff Fahey – que interpreta o tal escritor -, após este contestar o trágico fim de seu roteiro. (o confronto aos ideais hollywoodianos/estadunidenses não param por aí. Durante todo o filme, Eastwood também dá uma cutucada no imperialismo norte-americano, quanto a exploração e colonização africana.)
Mas Eastwood, literalmente, sabe que o que tem em mãos não é um material qualquer, que começa e termina na mesma estaca. Ele tem consciência que o final, uma vez extremamente amargo, é capaz de mudar sua personagem a um ponto em que não se existe certeza sobre mais nada, apenas que o escritor estava certo quando contestou o pungente final criado para terminar seu filme. Cria-se então um paralelo: enquanto o filme que assistimos termina de maneira quase que brutal, o filme de Wilson tem a oportunidade – que mais soa como obrigação pessoal – de ganhar um final feliz. Tal final é capaz, também, de anular toda moralidade ‘Hemingwayna’ que plana sobre o filme, quebrando-a de tal modo que a simplicidade tão almejada pela personagem de Eastwood acaba por traí-lo, destroçando qualquer ideal que tentou alcançar enquanto caçador e humano selvagem.
Abalado com o que acontece – algo que prefiro não revelar, para que a reação primária de quem assistir seja mais contundente -, Wilson senta-se sobre sua cadeira de diretor, prepara o set de filmagem e, oscilante, grita ‘ação’. O corte seco, que leva à tela escura toda carga - psicológica, social, cinematográfica, humanista, etc - derramada sobre nós ao longo das quase duas horas de filme, é enfim a redenção desse drama hawksiano, baseado na persona de John Huston e criado como ponto de análise de um diretor sobre si mesmo, enquanto realizador, ator e ser humano.
