quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Jacques Demy: Pele de Asno


Se o cinema, arte comunal que lança dados ao (im)possível, que propõe uma outra realidade/visão de quem o realiza, e que busca no espectador um refúgio para suas intenções e peripécias, pudesse ser resumido a um único filme, este seria Pele de Asno - um conto de fadas de Perrault adaptado sob as lentes de Jacques Demy, diretor que desde pequeno nutriu amor pelo cinema e pela história de Peau D'ane, uma princesa que decide fugir de seu reino após ser pedida em casamento pelo próprio pai, ao passo que recebe ajuda de uma fada madrinha e se apaixona por um príncipe de outras terras.

Escrevo essas palavras enquanto escuto as músicas de Michel Legrand, compositor francês que criou a trilha sonora deste que é um dos mais belos exemplos daquele cinema rompedor das barreiras de realidade, que busca na imagem em movimento um mundo fantástico onde não existe limites para a imaginação e para o poder de criação. Adaptado de uma das histórias de "Contos da Mamãe Gansa" - que conta também com famosos contos de fadas como A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul, entre outros -, Pele de Asno entra na filmografia de Demy como um perfeito exemplar de seu cinema romântico, de plasticidade quase irretocável, delicada e pura, e musical: as músicas, nos filmes de Demy, tomam proporções tão grandes que se transformam quase que em personagens vivos. Os Guarda-Chuvas do Amor, por exemplo, é inteiramente cantado, com diálogos melodiosos/rítmicos; não o bastante, é um dos filmes mais bonitos que se tem notícia.


Pele de Asno não é diferente, apesar de selar pelo gênero mais conhecido do musical: as melodias são normalmente intercaladas com partes da história, e no momento em que se vê necessária a expressão direta dos sentimentos das personagens, elas entram, entoadas pelas vozes de Catherine Deneuve, Jacques Perrin, Delphine Seyrig, etc. A música pode, em determinado momento, interromper bruscamente uma cena dramática, tirando-lhe um pouco de sua carga emocional, mas sendo músicas tão bem relacionadas à história, tão pertences de fato ao conto que fazem presença e tão belas, o problema é infamado. Aqui, elas não atuam como agentes de alegria contagiante, grandes coreografias e cenários babilônicos - como nos grandes clássicos americanos -, mas de uma maneira mais simplista, pessoal, que reside mais nos sentimentos particulares de cada uma das personagens. Esse, talvez, é um dos grandes charmes do filme, transformando a trama de conto de fadas num algo passionalmente singular, enquanto reflete tudo aquilo que o cinema busca enquanto arte imaginativa.

(Cena mais linda do mundo aqui)

Fadas, sapos, princesas, amores proibidos e sonhos; além de rebuscar temas mais sérios como o incesto e o preconceito: Pele de Asno sobrevive ao tempo do mesmo jeito que os contos de Perrault. Nos vemos espelhados, de uma maneira ou de outra, no fantástico apresentado pelas suas histórias, enquanto estes tentam fugir da realidade que nos rodeia. Afinal, é isso que procuramos: um abrigo irreal, onipresente em todos os contos de fada. Demy, que tantou os ouviu quando pequeno, sempre teve enorme vontade de adaptar Peau D'ane para o cinema, mas com certeza nunca soube que o produto final seria algo tão refinado e espetacular - de fotografia embaçada que relembra o período áureo hollywoodiano -, que pretende em cada frame ir atrás de um outro universo, onde o inverossímil ganha crédito e o espectador recebe uma bela carga celebrativa de amor ao cinema e à vida.

Um comentário:

  1. Eis uma das feridas que carrego comigo. Assistia essa pérola nos anos 90, mas a cópia era tão ruim que abandonei o cineclube. Demy é um cineasta que vale ouro. E esse texto do Luís está a altura do respeito que tal cineasta merece. Desprende-se de cada linha um cuidadoso e extremado amor a essa arte que não para de encantar: O Cinema. Parabéns .

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